domingo, 31 de maio de 2015

Manifesto pela Liberdade de Choro

Esses dias eu estava escrevendo, e saiu algo de especial. Uma mistura minha com Fernando Pessoa e Chico Buarque, que apresentei na faculdade! Espero que gostem.

               Tem um dia que a gente nasce. Um ser humano frágil, numa cama de hospital. Você dá os primeiros suspiros de vida, e chora. Já se perguntou alguma vez por que a gente chora? O nosso primeiro contato com o mundo... É um choro estridente, selvagem, no meio de muito sangue. Eu acho que a gente começa a vida chorando porque já sabe que ela não vai ser nada fácil. Começa assim e termina assim: vermelha. E assim que a gente nasce, alguém vai e dá um nome pra gente. Desse jeito, sem perguntar. E, sem perguntar nada, diz se a gente é menino ou menina. E a partir daí somos alguém.
                Mesmo sem saber, nós já somos carimbados com um rótulo. Daquele momento em diante, tudo depende daquele rótulo. Se for menina, vai ter que usar saia, gostar de rosa, ser moça recatada e pronta pra casar. Se for menino, tem que gostar de azul, usar calça, sair aprontando com a filha dos outros. E tem que odiar rosa, brincar de carrinho e ser macho. Não nascemos pra perder tempo ou dinheiro: nascemos pra sermos máquinas.
                Pro Direito, somos um menino ou uma menina, tá escrito no documento. Tem a certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir. Um número de série, que nem gado, pra gente ser marcado desde sempre. Alguém conta pra gente que nós vamos ganhar a vida. E vendem pra gente que somos iguais. Que as oportunidades são iguais pra todo mundo. Então por que eu não ganho nada? Por que eu ainda espero?
Eu nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda.
                Eu cansei disso tudo. Cansei mesmo. Tem dia que a gente quer ficar igual neném, chorando no colo da mãe. Sem fazer nada, só chorar. Eu me lembro, quando criança, que me gritaram na rua: Viado! Corri para minha mãe chorando, e ela perguntou o que foi: foi nada. Tinha me lembrado que ela falou pra vizinha anteontem que não tinha criado filho pra ser viado.  Essa noite eu não dormi, chorei. Sabe, tem sido os dias da minha vida: chorando pelos cantos. Rezando baixo e me perguntando por que, por que, eu não posso ser livre pra traçar o meu próprio caminho.
                E olha, eu já passei por muita coisa nesses anos. Tendo que provar pras outras pessoas que eu era um ser humano. Olha só! Já tive que enfrentar pai e mãe, esses seres sagrados que deviam proteger a gente de tudo. Já tive que lidar com muita gente que achava que eu fosse menos homem. E sabe o que eu faço com isso? Se menos homem quer dizer mais livre, eu escolho a liberdade. Sem nem olhar pra trás. Vou mesmo é rir disso tudo. E dizer que ninguém nasceu pra passar por isso. E perceber a miséria e a mesquinharia de quem lucra com isso tudo.
Já me disseram um dia pra eu não “levantar bandeira”. Só que a minha bandeira é o meu corpo. Minha bandeira é minha alma. Minha bandeira sou eu. E comigo, eu faço o que quiser. Você consegue imaginar, ao menos por um instante, como é ter que esconder o seu amor? Ser chamado de sujo, vil e mentecapto, apenas por amar quem você quis amar? Por ter a ousadia de dizer que ama? Por cometer o crime de querer ser tratado como gente? Eu sei que é difícil. É porque quando a gente nasce, todo mundo imagina que vamos ser comportadinhos e seguir a vida, não importa o que aconteça.
Pra mim, já chega de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
                Pois eu digo, em alto e bom som: eu sou gente. Eu não vou me contentar com o resto, eu não vou aceitar ser menos gente. Porque eu tenho orgulho. Orgulho de poder me realizar plenamente, de poder amar sem ter que me culpar por dentro. Porque eu sou bicha. Escandalosa. Pintosa. E não vai ser um documento e um corpo que vão me aprisionar pela eternidade.

                Quando eu nasci, me chamaram de Talles. E essa é a minha história.

Um comentário: