Lésbica Comunista
Hoje
eu não senti vontade de comer... Isso pode ser comum para algumas pessoas, mas
não pra mim, afinal, nestes 19 anos, eu sempre fui capaz de querer uma panela
de brigadeiro mesmo depois de comer 2 hambúrgueres gigantes. Faz mais de 6h que
não como e essa informação não é tão relevante, mas foi a forma que encontrei
para começar esse texto.
Acontece
que marquei minha namorada em uma publicação no Facebook e no comentário eu a
chamava de “amor”. Assim que cheguei em
casa, depois de quase 4h sem falar com ela, olho meu celular e vejo uma
mensagem: “Já te pedi pra não me marcar no FB, minha mãe tem poucos amigos e
minhas atividades aparecem na linha do tempo dela, pode dar ruim pra mim”. Não
sei por que isso me doeu tanto, feriu meu coração de um jeito tão profundo que
meu estômago vazio parou de me incomodar e não senti vontade nenhuma de comer,
mesmo sabendo que devia (o lance com a comida é que quando estou ansiosa ou
triste o que mais tenho é vontade de comer e, pela primeira vez na vida, isso
não aconteceu). Pelo contrário, eu senti cansaço, um desânimo tão intenso que
fui incapaz de ir até a cozinha.
Fui
tomar banho. Passei 35 minutos ininterruptos chorando até soluçar, mas me
esforçando para não fazer muito barulho e despertar a atenção das pessoas da
casa. É verdade: foi só um pedido em nome da precaução e da preservação feito
por minha namorada. Foi só mais uma necessidade de discrição, um cuidado a mais
para não ser descoberta. Eu não devia ter me sentido tão horrível.
Eu
não devia ter me sentido tão horrível todas as vezes que brigaram comigo por eu
jogar futebol; não devia ter me sentido tão horrível por não gostar de
maquiagem ou roupas desconfortáveis; não devia me sentir tão horrível por ouvir
constantemente dos meus próprios pais que eu não me parecia com uma menina; não
devia me sentir tão horrível tentando sufocar todos os desejos sobre outras
meninas e conseguindo asilo apenas nas fugas da realidade proporcionadas por
muitas e muitas drogas; não devia me sentir mal por ouvir da boca de pessoas da
religião que eu costumava seguir que “devemos ter compaixão dos homossexuais,
eles são irmãos que estão falhando na sua missão na terra, homossexualidade não
é natural”; eu realmente não devia me sentir mal por massacrar minha própria
personalidade em busca de conquistar a atenção de um homem e provar pra todo
mundo que eu não era aquilo que haviam dito que eu seria; eu não devia me
sentir mal por ouvir da minha mãe que eu sempre tive problemas em me entender
enquanto mulher e isso era porque eu queria compensar dentro de mim o pai que
não tive; não devia me sentir horrível em
saber que todo carinho e orgulho que minha família sente da esposa do meu irmão
nunca vai ser destinado a alguém que eu ame; eu não deveria me sentir tão
horrível de não poder compartilhar com minha família que, pela primeira vez
nessa vida, eu realmente encontrei alguém que me ama, me respeita e me faz
feliz; não deveria me sentir tão mal por minha mãe, mesmo dizendo que não é
homofóbica, não gostar de tocar no nome da minha namorada e afirmar pra si
mesma que talvez seja só uma fase minha; eu não deveria me sentir assim por
saber que minha avó nunca mais vai me tratar da mesma forma e que ela repudia
meus planos de ter filhos e criá-los com uma mulher , que o meu avô faz piadas
com a sexualidade da Dilma, da Ângela Merkel, da minha tia-avó (que também é
lésbica) e diz ter nojo de duas mulheres se beijando, que eu não posso andar de
mãos dadas e nem beijar minha namorada
no centro da cidade para não sermos descobertas; eu não deveria me sentir tão
mal por saber que a mãe da mulher que eu amo acha que eu não sou boa pessoa
pelo fato de eu ser lésbica e que tenho que deixar de fazer coisas que todos os
casais heterossexuais podem fazer abertamente e são agraciados com elogios por
seus familiares nas redes sociais, para evitar que a minha sogra descubra que é
minha sogra; eu não deveria me sentir horrível por desejar que os dias passem o
mais rápido possível para que eu arrume um emprego estável e finalmente possa
morar com a pessoa que amo, não pelo fato de nos amarmos apenas, mas pela
necessidade de sair de casa para poder viver com mais liberdade nosso
relacionamento; eu não deveria ficar triste pelo fato de minha namorada não
poder freqüentar a minha casa e nem eu a casa dela; eu não devia me sentir
horrível por saber que a qualquer momento alguém pode descobrir, contar para
toda minha família e me tornar o mais novo motivo de decepção e assunto mais
comentado de reuniões familiares, repletas de veneno e preconceito; eu não
deveria me sentir inútil e fraca por chorar 35 minutos ininterruptos sentada no
chão do boxe, com água caindo na minha cabeça, me perguntando a todo momento se
eu não podia ser diferente, se eu não podia não ser como eu sou.
Sabe,
eu nunca pensei em suicídio, mas já me matei diversas vezes tentando ser outra
pessoa. Mesmo empoderada e auxiliada pela luta do movimento LGBT, ainda assim não
posso viver plenamente quem eu realmente sou. E, se isso me massacra, imagina o
que eu não sinto quando penso que tudo isso que me assombra, também assombra a
ela: a pessoa mais doce que esse mundo já viu, a filha mais respeitosa e
carinhosa de seus pais, a militante mais honesta e dedicada do seu partido, a
mulher mais forte que eu já conheci, o amor mais intenso que eu já senti. Eu
preferia carregar toda a homofobia do mundo em minhas costas, ser torturada
todos os dias (como se fazia na inquisição com as “bruxas”), até ser expulsa de
casa!, mas ver os olhos dela segurando lágrimas advindas dessa brutalidade irracional
que se chama intolerância, eu não aguento.
Eu sei que devia aguentar, mas não consigo: me
sinto horrível e não sinto vontade de comer.
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