domingo, 25 de janeiro de 2015

Desabafo

Lésbica Comunista



Hoje eu não senti vontade de comer... Isso pode ser comum para algumas pessoas, mas não pra mim, afinal, nestes 19 anos, eu sempre fui capaz de querer uma panela de brigadeiro mesmo depois de comer 2 hambúrgueres gigantes. Faz mais de 6h que não como e essa informação não é tão relevante, mas foi a forma que encontrei para começar esse texto.

Acontece que marquei minha namorada em uma publicação no Facebook e no comentário eu a chamava de “amor”.  Assim que cheguei em casa, depois de quase 4h sem falar com ela, olho meu celular e vejo uma mensagem: “Já te pedi pra não me marcar no FB, minha mãe tem poucos amigos e minhas atividades aparecem na linha do tempo dela, pode dar ruim pra mim”. Não sei por que isso me doeu tanto, feriu meu coração de um jeito tão profundo que meu estômago vazio parou de me incomodar e não senti vontade nenhuma de comer, mesmo sabendo que devia (o lance com a comida é que quando estou ansiosa ou triste o que mais tenho é vontade de comer e, pela primeira vez na vida, isso não aconteceu). Pelo contrário, eu senti cansaço, um desânimo tão intenso que fui incapaz de ir até a cozinha.
Fui tomar banho. Passei 35 minutos ininterruptos chorando até soluçar, mas me esforçando para não fazer muito barulho e despertar a atenção das pessoas da casa. É verdade: foi só um pedido em nome da precaução e da preservação feito por minha namorada. Foi só mais uma necessidade de discrição, um cuidado a mais para não ser descoberta. Eu não devia ter me sentido tão horrível.
Eu não devia ter me sentido tão horrível todas as vezes que brigaram comigo por eu jogar futebol; não devia ter me sentido tão horrível por não gostar de maquiagem ou roupas desconfortáveis; não devia me sentir tão horrível por ouvir constantemente dos meus próprios pais que eu não me parecia com uma menina; não devia me sentir tão horrível tentando sufocar todos os desejos sobre outras meninas e conseguindo asilo apenas nas fugas da realidade proporcionadas por muitas e muitas drogas; não devia me sentir mal por ouvir da boca de pessoas da religião que eu costumava seguir que “devemos ter compaixão dos homossexuais, eles são irmãos que estão falhando na sua missão na terra, homossexualidade não é natural”; eu realmente não devia me sentir mal por massacrar minha própria personalidade em busca de conquistar a atenção de um homem e provar pra todo mundo que eu não era aquilo que haviam dito que eu seria; eu não devia me sentir mal por ouvir da minha mãe que eu sempre tive problemas em me entender enquanto mulher e isso era porque eu queria compensar dentro de mim o pai que não tive;  não devia me sentir horrível em saber que todo carinho e orgulho que minha família sente da esposa do meu irmão nunca vai ser destinado a alguém que eu ame; eu não deveria me sentir tão horrível de não poder compartilhar com minha família que, pela primeira vez nessa vida, eu realmente encontrei alguém que me ama, me respeita e me faz feliz; não deveria me sentir tão mal por minha mãe, mesmo dizendo que não é homofóbica, não gostar de tocar no nome da minha namorada e afirmar pra si mesma que talvez seja só uma fase minha; eu não deveria me sentir assim por saber que minha avó nunca mais vai me tratar da mesma forma e que ela repudia meus planos de ter filhos e criá-los com uma mulher , que o meu avô faz piadas com a sexualidade da Dilma, da Ângela Merkel, da minha tia-avó (que também é lésbica) e diz ter nojo de duas mulheres se beijando, que eu não posso andar de mãos dadas e nem beijar  minha namorada no centro da cidade para não sermos descobertas; eu não deveria me sentir tão mal por saber que a mãe da mulher que eu amo acha que eu não sou boa pessoa pelo fato de eu ser lésbica e que tenho que deixar de fazer coisas que todos os casais heterossexuais podem fazer abertamente e são agraciados com elogios por seus familiares nas redes sociais, para evitar que a minha sogra descubra que é minha sogra; eu não deveria me sentir horrível por desejar que os dias passem o mais rápido possível para que eu arrume um emprego estável e finalmente possa morar com a pessoa que amo, não pelo fato de nos amarmos apenas, mas pela necessidade de sair de casa para poder viver com mais liberdade nosso relacionamento; eu não deveria ficar triste pelo fato de minha namorada não poder freqüentar a minha casa e nem eu a casa dela; eu não devia me sentir horrível por saber que a qualquer momento alguém pode descobrir, contar para toda minha família e me tornar o mais novo motivo de decepção e assunto mais comentado de reuniões familiares, repletas de veneno e preconceito; eu não deveria me sentir inútil e fraca por chorar 35 minutos ininterruptos sentada no chão do boxe, com água caindo na minha cabeça, me perguntando a todo momento se eu não podia ser diferente, se eu não podia não ser como eu sou.
Sabe, eu nunca pensei em suicídio, mas já me matei diversas vezes tentando ser outra pessoa. Mesmo empoderada e auxiliada pela luta do movimento LGBT, ainda assim não posso viver plenamente quem eu realmente sou. E, se isso me massacra, imagina o que eu não sinto quando penso que tudo isso que me assombra, também assombra a ela: a pessoa mais doce que esse mundo já viu, a filha mais respeitosa e carinhosa de seus pais, a militante mais honesta e dedicada do seu partido, a mulher mais forte que eu já conheci, o amor mais intenso que eu já senti. Eu preferia carregar toda a homofobia do mundo em minhas costas, ser torturada todos os dias (como se fazia na inquisição com as “bruxas”), até ser expulsa de casa!, mas ver os olhos dela segurando lágrimas advindas dessa brutalidade irracional que se chama intolerância, eu não aguento.
 Eu sei que devia aguentar, mas não consigo: me sinto horrível e não sinto vontade de comer.


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