quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Sobre as vivências trans* e a desconstrução cotidiana de preconceitos...


*Gosto do uso do termo trans porque ele engloba tanto travestis, transexuais  e trans homens, com também pessoas em qualquer trânsito de gênero

Fui convidada para falar sobre transexualidade e travestilidade, mas preferi ampliar a mera conceituação para uma discussão acerca do que denominarei vivências trans. Para discutir tais vivências e suas (im)possibilidades de existência, primeiro torna-se necessário algumas reflexões acerca de corpo, sexo e  gênero. O que seria o corpo? E o sexo? Quais as relações destes primeiros com o gênero, essa palavrinha tão mágica que as feministas adoram utilizar?

Uma concepção bem difundida, inclusive dentro dos meios científicos é que ganhamos um corpo, que pode em maior ou menor grau ser moldado pela cultura. Contudo, o corpo é considerado dado por uma natureza. O sexo, por consequência, também seria dado - reflexo dessa concepção biológica do ser humano. Eis que surgem alguns questionamentos: nosso corpo, mesmo antes do nascimento é atravessado por uma série de tecnologias, como as comidas industrializadas ou suplementos que nossas mães comem, como o uso de produtos dentários, para cabelo, cremes para pele, exercícios na academia, uso de medicamentos o tempo todo, intervenções médico-cirúrgicas, etc... O que seria então esse natural? Qual corpo fugiria dessa constante construção cultural que nos interpela o tempo todo? Tem como dizer que existe um "corpo natural"? 

Caminhando um pouco além na nossa conceituação, vamos falar sobre o sexo. Sexo seria o órgão genital que a pessoa apresenta ao nascer. Pode ser o pênis, a vagina ou ambos (no caso de pessoas intersexuais). E, para muitas pessoas, esse órgão estaria colado a uma determinada identidade de gênero (ser homem ou ser mulher na nossa sociedade). E no caso, então, de pessoas intersexuais? O sexo realmente NÃO define a identidade de gênero de alguém, muito menos uma essência. Não é porque se nasce com uma determinada configuração corporal que a pessoa deve seguir o gênero que lhe fora convencionado socialmente. Como já diria Simone de Beauvoir, em sua célebre frase feminista: "Não se nasce mulher, Torna-se mulher". Nesse sentido, um órgão genital não define nada na vida de ninguém, nem mesmo o fato da pessoa fazer xixi sentada ou em pé (na verdade, o ato de fazer xixi seria mais uma repetição que tornaria alguns formas mais fáceis que outras, haja vista que não pro acaso inventamos o vaso sanitário - olha a cultura nos produzindo novamente... rs!). Gênero seria portanto a forma como a pessoa se reconhece (autoidentifica-se independente do seu corpo) de acordo com o que é convencionado entre ser masculino e feminino na nossa sociedade, lembrando que, nesse caso falamos mais de masculinidades e feminilidades, visto que não há um padrão hegemônico e a-cultural e a-histórico do que é ser homem, ser mulher ou qualquer identidade que fuja dessa dicotomia. 

Assim, pessoas que tem um órgão genital que condiz com o que é socialmente aceito ao seu gênero são denominadas pessoas cissexuais (abrevia-se para cis). E o que seria essa denominação tão estranha? Seria, dentro da concepção de que nossas identidades são auto-construídas o tempo todo pelos contextos que nos interpelam, o homem que nasce com o pênis e a mulher que nasce com vagina. Isso parece óbvio, mas realmente não o é. Porque existem pessoas com pênis e vagina ao mesmo tempo, as pessoas interssexuais, que questionam o sexo enquanto determinante das nossas performances de gênero. E também há mulheres que nasceram com pênis e homens que nasceram com vagina - nesse caso pessoas trans. Mesmo o sexo, numa concepção pós-estruturalista, é questionado pois é atravessado pela linguagem que o nomeia, que o produz (olha a cultura aí de novo... rs). Nessa concepção, o gênero traz inteligibilidade aos corpos mesmo antes deles saírem da barriga das mães. Essa dicotomia masculino/feminino vai produzir o corpinho que irá nascer através de uma série de discursividades e performances repetitivas que vão se naturalizado ao longo do tempo, tornando a pessoa lida como inteligível dentro dos padrões heteronormativos de nossa sociedade. E os corpos, então, que fogem desse modelo? São excluídos, tem suas vivências tornadas ilegitimas e segregadas nos espaços de loucura, exoticidade, patologia ou do "errado". não é porque uma maioria estatística se considera cis que esse normal deve tornar o outro como patológico. Esse normal, longe de dizer de uma identidade saudável dentro do que é convencionado natural, representa apenas uma regularidade estatística (que pode inclusive ser questionável, haja vista a concepção naturalizada de sexo que absorvemos). Logo, as vivências trans são ão legítimas quanto as cis. Ao olhar sob outra perspectiva que não hierarquiza, conseguimos tornar pessoas trans tão humanas quanto cis. Se o corpo de todo mundo é construído, porque é o corpo trans que é considerado exótico e ilegítimo? O que vai realmente definir o grau de autonomia que a pessoa pode ter sobre o seu corpo?    

Essas são as vivências trans, que lutam por legitimidade nos espaços cotidianos que circulam. Que sofrem formas de violências corretivas por questionar a suposta naturalidade dos corpos e de sexo é colado a gênero. Longe de esgotar a discussão, espero que esse texto possa ajudar a você, leitora e leitor, a pensar sobre realidades ainda marginalizadas. Acredito que essa concepção nos propicia uma visão mais humana e ética sobre pessoas trans, que nos permite problematizar alguns aspectos que são abordados nesse blog.  


Desculpem-me se me alonguei demais. Agradeço pela atenção e pelo convite para escrever no blog.

Atenciosamente, Brune Coelho Brandão

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