quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Porque eu sou lésbica, mulher e preta!


Ana Emília Carvalho



        Muito se fala e se reclama da invisibilidade dos LGBT’s no cinema, TV e literatura. A produção cultural e de entretenimento para este setor da sociedade é muito escasso (para não dizer quase inexistente), só muito recentemente passamos a nos ver representadxs com maior frequência em séries e filmes nos quais não acabávamos mortxs de forma trágica e violenta ao final. Bem, se é consenso hoje que essa invisibilidade existe e que ela é resultado da opressão que os LGBT’s sofrem dentro da nossa sociedade, já não é assim tão consensual, mas não deixa de ser um fato, que as mulheres bissexuais ou lésbicas e negras são ainda mais invisibilizadas dentro deste universo e, principalmente, fora dele.
      Podemos citar exemplos de seriados como Orange Is The New Black, The L Word, filmes como Azul é a Cor Mais Quente e a produção nacional Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Aliás, recomendo!) e até a última novela do horário “nobre” da Rede Globo. Os meninos podem se sentir pouco representados pelos exemplos que eu citei, mas a escolha foi feita em partes por gosto pessoal e em partes para poder chegar de forma mais rápida à minha problemática.
      Vamos parar um instante para refletir sobre xs protagonistas desses filmes e séries. Quero que me digam quantxs negros e negras são protagonistas nesses seriados? lembrando que o núcleo negro do OITNB não conta, primeiro por as protagonistas continuarem sendo brancas, de classe média e coincidentemente os romances lésbicos do núcleo negro continuarem apenas dentro daquele núcleo. Achou quantas? Uma? A Bette Porter (Jennifer Beals) do The L Word? Confesso que nos meados da minha adolescência, quando eu tinha acabado de descobrir a minha sexualidade, esse seriado já foi meu preferido, assim como sei que ainda vai ser o preferido de muitas garotas que se descobrem bi ou lésbicas e não fazem a mínima ideia de para onde se voltar pra entender melhor a si mesmas.

      Assisti a esse seriado e, com o passar do tempo, apesar de continuar gostando, algo nele começou a me incomodar, algo que eu não sabia definir direito e que demorei muito tempo pra saber do que se tratava. Eu não me sentia representada, não via naquelas mulheres brancas, loiras, moradoras de Los Angeles, sendo que a mais pobre delas tinha seu próprio salão de beleza, a minha realidade. Eu tinha a Bette, certo, mas ainda assim não conseguia me ver nela, ela era rica, com a casa cheia de obras de arte e o cabelo alisado dela não se parecia com o meu. Além disso, apesar de o fato de ela se identificar como afro-americana, ela nunca sofreu preconceito por ser negra, em nenhum episódio. Toda a problemática que a envolve passa apenas por ela ter um sério problema com fidelidade e uma crise financeira. E assim como a Bette, todas as personagens lésbicas que eu via nesses programas nunca se pareciam comigo, nem com a maior parte das lésbicas e bisssexuais que eu conheço não me recordo de ter nenhuma amiga que tenha dinheiro pra sempre frequentar locais tão caros quanto os que elas frequentam.

     E foi assim que eu comecei a ficar cansada, primeiro cansada de ter que passar horas procurando algum filme/seriado/livro com temática lésbica por horas a fio e, no final, sempre me deparar com pornôs voltados pra satisfação de homens cis a hipersexualização das relações lésbicas é outro problema muito recorrente, reflexo do machismo e da objetificação da mulher, cansada de, nas raras vezes que encontrava algo que me agradava, as mulheres retratadas ali seguirem padrões nos quais eu nunca iria me encaixar, que não representavam a minha realidade, que não retratavam os problemas sérios que as mulheres LGBT’s  negras enfrentam diariamente, cansada daquele mundo de fantasia e negação, em que tudo parece perfeito.


    Cansada que estava das produções artísticas sobre “o nosso mundo” resolvi me voltar mais pra realidade e nesse processo me apareceu outro problema: “Onde estão as lésbicas e bissexuais negras?”. Na minha universidade? Não. No meu círculo de amizades? Não. Nos locais que eu costumo frequentar? Também não.

    Cheguei a pensar que o problema fosse os lugares que eu frequentava, que não fossem os espaços das negras, mas então estaríamos de volta ao século XIX em que éramos separadas em senzalas e casa grande? Percebi que não existiam espaços de negras e espaços de brancas, pelo menos não como uma forma de escolha. Percebi que a invisibilidade que sofremos não se restringe apenas ao mundo artístico e entendi mais do que nunca sobre como “a arte imita a vida”. A negras não eram representadas em papeis porque o machismo, a homofobia e o RACISMO contribuíam em conjunto para que nós não fossemos vistas nem no mundo real. Descobri finalmente onde estavam e maior parte das lésbicas e bissexuais negras: nos morros, periferias, sofrendo de forma ainda pior e mais intensa com a opressão, sendo maioria naqueles números das estatísticas de mortes de LGBT’s que tanto nos assustam. Nós não estamos no movimento LGBT e quando estamos somos a minoria dentro da minoria, silenciadas por quem acha que se combate as opressões de forma separada, como se fosse possível traçar linhas bem definidas que separassem todas as pessoas LGBT’s, negrxs e não ficasse ninguém naquele meio sendo cortadx por várias dessas linhas.

    Porque eu sou lésbica, mulher e preta, não sou cada uma dessas coisas, mas todas elas em conjunto, me assumi lésbica antes de me assumir como negra, por falta de compreensão, por falta de debater sobre, por falta de encontrar pessoas que passam pelas mesmas situações que eu. Deixei de ter voz por muito tempo, não porque escolhi isso, mas por ter sido calada pela opressão, pela dupla, tripla opressão que sofria. Então mudei minha forma de ver o mundo, de ME ver, resisti às mãos que me calavam e pela primeira vez escutei minha própria voz. E se antes eu achava que era muda, agora eu sabia que tinha muito a dizer...



2 comentários:

  1. texto bonito e significativo!
    ser lésbica e negra em nosso país é ter a certeza que em algum campo seremos apontadas. A bissexualidade é uma discussão que me atraí, atualmente a hipersexualização é algo assustador, pois as pessoas acham que a bissexualidade alheia é direito para elas apontarem ou comentarem. Ser lésbica ou negra, ou tudo junto (porque somos completadas, não em partes!) representa passar a vida inteira brigando por um espaço que parece que não somos aceitadas... pelo menos nos espaços que frequento, assim como você.
    Gostei do texto pela reflexão da mídia, porém creio que a Globo é uma mídia que nunca irá me presentar, seja lá o que tiver passando. É uma mídia de ditadura, que mostra o grupo lgbt de forma estereotipada e extremamente preconceituosa. Confesso, não faço a minima questão de ter grupo lgbt em novelas da Globo, considero uma emissora extremamente homofóbica e racista!

    dentrodabolh.blogspot.com

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    1. Concordo plenamente com você quando fala sobre a Globo, além de todas as criticas que você fez ainda podemos pontuar como o interesse que eles tem é apenas utilizar a imagem dos LGBT's como forma de arrecadar renda, acabam por atrair o publico com a falsa ideia de representatividade quando na verdade tem como objetivo apenas a obtenção de lucro pela exploração da imagem do nosso setor social.

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